Resumo: A presente pesquisa apresenta uma escola premiada com o título  Territórios Educativos 2017, localizada no bairro paulistano de Perus, na Zona Noroeste da capital paulista, por ter realizado um projeto inovador de acolhimento, educação, formação, direcionamento e manutenção dos direitos humanos por meio do projeto Haiti é aqui… em Perus!, haja vista o bairro já ter em sua tradição a multiculturalidade dos povos e o acolhimento como características básicas de sua existência. Para tanto, para a compreensão desse bairro, buscou-se o caminho da pesquisa quantitativa e qualitativa, realizando-se coleta de dados a partir da chegada dos imigrantes, que tiveram como porta de entrada a ferrovia São Paulo Railway Company, da segunda metade do século XIX, assim como buscou-se efetivar uma entrevista entre professores e alunos que trouxeram para o território uma nova ideologia, ressignificando o papel da escola a partir da promoção do encontro entre culturas, exemplificando em ações concretas desenvolvidas, que demonstram que de fato a educação é uma eficiente ferramenta para a manutenção e preservação dos direitos humanos.

Palavras chaves: Território educativo, direitos humanos, imigração

 

SUMMARY: This research presents a school awarded the title of Educational Territories 2017, located in the São Paulo neighborhood of Perus, in the Northwest Zone of São  Paulo, for having carried out an innovative project for the reception, education, training, direction and maintenance of human rights through The Haiti project is here … in Perus !, since the neighborhood already has in its tradition the multiculturalism of peoples and the welcome as basic characteristics of its existence. Therefore, to understand this neighborhood, we sought the path of quantitative and qualitative research, by collecting data from the arrival of immigrants, who had as their gateway to the São Paulo Railway Company railway, from the second half of the year. nineteenth century, as well as an interview between teachers and students who brought to the territory a new ideology, resignifying the role of the school through the promotion of the encounter between cultures, exemplifying in concrete actions developed, which demonstrate that in fact Education is an efficient tool for the maintenance and preservation of human rights.

Keywords: Educational Territory, human rights, immigration

 

Introdução

 

É possível uma escola se abrir para a comunidade e em simbiose com os demais equipamentos da região potencializar um território para o exercício da prática educativa da preservação dos direitos humanos dos refugiados/imigrantes?

Esta é a pergunta chave desta pesquisa, que encontrou numa escola de um bairro da Zona Noroeste da capital paulista a resposta. A inspiração partiu da própria percepção do aumento significativo de negros (pretos) transitando pelo bairro de Perus. A saber, o estranhamento dos brasileiros e os olhares direcionados à essas pessoas, segundo próprios relatos, não eram por conta da pigmentação da pele, já que a massiva maioria dos moradores de Perus, comum em qualquer periferia paulistana, são negros, mas sim pelo estranhamento do som das vozes identificadas posteriormente como: o creole e o francês, uma barreira linguística que no mesmo território produz distanciamento físico dos brasileiros para com os imigrantes, promovendo, naturalmente, a formação de grupos separados.

Esse estranhamento dos diversos tipos de sons na cidade de São Paulo, incluindo a fala, já foi exaustivamente analisado pelo antropólogo e especialista em comunicação Massino Canevacci em A Cidade Polifonica[1], o qual encontrou nas diferentes vozes urbanas a essência de uma cidade que se comunica, dentre outros meios, pela fala, que de forma peculiar produz estranhamento para o ser humano comum que ouve, enxerga e sente.

Trata-se portanto de uma pesquisa que acredita nas potencialidades culturais de um território combinado com a educação, como um caminho seguro para o exercício das práticas das relações humanas e, principalmente, a prática da manutenção dos direitos humanos.

 

Perus na capital paulista

O distrito de Perus encontra-se situado na porção Noroeste do município de São Paulo, isolado e distante do restante da cidade por um cinturão verde pertencente à Região do Vale do Rio Juquery, da serra da Cantareira e do maciço do Jaraguá, desconsiderando a possibilidade de pertencimento da Zona Norte da Capital[2].

Até a primeira metade do século XIX, o território que compreende hoje o bairro paulistano de Perus, não constituía uma área economicamente importante. Há notícias de que no período colonial houve exploração de ouro no Pico do Jaraguá, trazendo significativa quantidade de aventureiros para a região, movidos pelo mito do ouro do Jaraguá[3], que em nada influenciou o desenvolvimento futuro do bairro.

Perus só vai conhecer um acelerado desenvolvimento a partir da chegada da ferrovia São Paulo Raiway Company, popularmente chamada de “Ingleza” (com a letra “z”)[4], pois se tratava da principal estrada de ferro responsável pelo transporte do café do interior do estado, com partida na cidade de Jundiaí até Santos, no litoral paulista. Foram neste trajeto ferroviário que pequenos núcleos estações[5] surgiram, e com eles povoados nasceram, cresceram e tornaram-se centro de ligações para outras regiões periféricas[6].

Langenbush (1971), sintetiza no segundo capítulo de sua obra denominada A Evolução Metropolitana nos Arredores Paulistanos (1895-1915), que a estruturação da Grande São Paulo se deve aos núcleos de povoamentos constituídos ao longo da estrada de ferro “Ingleza”, caracterizados por ele como “povoados-estações”, e defendido como o “início da metropolização” ou “A expansão propriamente urbana de São Paulo”[7].

Por consequência, os troncos ferroviários fizeram as antigas estradas destinadas ao transporte de café em razão das tropas de muares entrarem em colapso, determinando uma nova reorganização nas rotas de transporte e, por consequência, uma “reorganização espacial[8], que possibilitou a formação de novos caminhos ligando a ferrovia às novas forças produtivas como a:

Companhia Melhoramentos de São Paulo (1890), o Hospital Psiquiátrico do Juquery e sua Fazenda (1898), a Estrada de Ferro Perus-Pirapora (EFPP, 1910), a Companhia Brasileira de Cimento Portland (1926) e também da Fábrica de Pólvora erguida a uns duzentos metros da Estação de Perus, a qual tornou-se a principal fornecedora de munição para o sistema de defesa do Porto de Santos[9].

Logo, essas reorganizações por novas estradas e caminhos vicinais tendo como ponto central a estação ferroviária, alavancaram o nascente núcleo urbano de Perus e de suas cidades-irmãs: Caieiras, Franco da Rocha, Francisco Morato e Cajamar.

Com a ferrovia, Perus tornou-se desde muito cedo, um polo de atração de migrantes e imigrantes[10], empreendedores e trabalhadores dispostos a empreender, comprar e vender a força de trabalho. Assim, ainda na década de 1920, a fábrica de Cimento Perus, erguida a menos de 500 metros da estação ferroviária, entrou em funcionamento ditando – junto com a estação da São Paulo Raiway Company[11]– as regras das relações comunitárias de trabalho e renda.

Sendo assim, no início da década de 1930, com a nova dinâmica socioeconômica regional, Perus foi elevado à categoria de distrito. No entanto, a acelerada expansão urbana deste bairro paulistano só ocorre durante o governo militar, com destaque à Rodovia Anhanguera (SP 330)[12], que passou a receber fortes investimentos no final da década de 1940, ligando a capital à Jundiaí e, fomentando o seu progresso na década de 1950, chegando até Campinas, tornando-se a primeira rodovia pavimentada e duplicada do país. A saber, durante o governo militar, a DERSA[13]assumiu o controle, fazendo da Rodovia Anhanguera a mais importante via de acesso do país, com 453 km ligando o bairro da Lapa, na capital paulista, até a cidade de Igarapava, na divisa com o estado de Minas Gerais.

Com a SP 332[14] sendo a antiga Estrada Velha de Campinas cruzando a porção oeste de Perus, assim como a SP 330 atravessando a região leste e a ferrovia na parte central e todas as outras vias de acesso ligando São Paulo ao interior, Perus passou a receber grande leva de moradores que vinham para a região fugindo dos pesados aluguéis cobrados na capital de São Paulo, fruto de especulação imobiliária num momento em que as antigas áreas operárias paulistanas eram pressionadas pelas transformações urbanas promovidas pela acelerada expansão da metrópole[15], que passaram a ocupar áreas acidentadas e fundos de vale, fomentando graves problemas de habitação e de transporte coletivo.

 

Com a ferrovia a periferia recebeu a multiculturalidade e a desigualdade

Um dos principais poetas brasileiro, Guilherme de Almeida,  membro da academia brasileira de letras, morto em 1969, em seu livro Cosmópolis, definiu São Paulo no início do século XX como “um resumo do mundo”. Isto porque, na década de 1920, a capital do estado paulista contava com mais de meio milhão de habitantes, em sua massiva maioria, imigrantes vindos de várias partes do mundo. Esse número, no entanto, pode não parecer muita coisa para quem vislumbra o presente e nasceu inserido na magnitude de uma hipermetropole[16] com mais de 12 milhões de pessoas. Mas para quem viveu nos primórdios da república e lembra que a cidade se agigantou em poucas décadas, se orgulha de pertencer a um lugar que não é conduzido, conduzia – fazendo uma alusão aos dizeres em latim da bandeira da cidade de São Paulo.

Complementando, os primeiros três séculos de vida da atual cidade de São Paulo foram praticamente insignificantes. Pode-se afirmar que no decorrer da primeira metade do século XIX a área urbana muito se assemelhava à dos tempos coloniais: um reduzido aglomerado, que pouco ultrapassava os limites da colina histórica, local de seu berço, ao fundar-se o colégio dos jesuítas[17].

Com a inauguração da ferrovia, São Paulo conhece sua 2ª fundação[18], transformando em poucas décadas a tristonha e acanhada paisagem paulistana[19] em um complexo e tumultuado parque urbano, deixando um rastro de civilização em trilhos, solidamente fincados na esteira do avanço cafeeiro, como um símbolo de todas as transformações[20].

As ferrovias conferiram às faixas por elas servidas uma vocação suburbana, por ora apenas incipiente, e às estações ferroviárias uma vocação de polarização da industrialização e do povoamento suburbano. Os “povoados-estação” seriam os “embriões” de importantes núcleos suburbanos da atualidade[21].

Essa herança deixada pela ferrovia possibilitou a formação de novos caminhos que compõem até hoje a malha periférica da cidade de São Paulo. Isso porque, o início da metropolização está estritamente relacionado às estações ferroviárias estabelecidas nos arredores paulistanos que se constituíram em pontos de convergência de produtos e pessoas das áreas circunvizinhas. Isto conferia ao local das estações a oportunidade de assumir uma modesta função regional[22].

Figura 1 – Carta das Estradas de Ferro da Província de São Paulo. Nota-se que todas as ferrovias de uma forma ou outra desembocam em seus trilhos da SPR. (Coleção Arte Cultura vol. VI.) São Paulo, Banco Sudameris, 1983. p. 59. Fonte: SOUKEF, 2008, p. 104.

Com a estrada de ferro, a população paulistana, que chegou na República com 64.934 mil habitantes, saltou para 239.820 mil em 1900, já acompanhada das indústrias, dos bairros industriais e da periferização nos arredores da área central da cidade. Vinte anos depois, São Paulo apontava 579.033 habitantes, justificando aqui “um resumo do mundo”, na fala do poeta Guilherme de Almeida.

Anos                        Habitantes

1890………………………….64.934

1900………………………..239.820

1920………………………..579.033

1940……………………..1.318.539

1950……………………..2.198.096 [23]

A falta de infraestrutura nos arredores da capital paulista não acompanhava o rápido crescimento populacional de São Paulo, gerando por consequência graves problemas, dentre os quais: precariedade nos serviços de transporte coletivo; saúde e educação; aumento significativo do número de desempregados, que por consequência resultou em degradação ambiental; e a falta de moradia, obrigando as pessoas a ocuparem áreas de risco, contribuindo para o fenômeno da “favelização”[24] como um lugar onde o Estado não se instalou[25].

O bairro paulistano de Perus é mais um exemplo de favelização e segregação socioespacial que se proliferou pela periferia paulistana nas décadas de 70, 80 e 90, patrocinada pelo aumento dos aluguéis nos subúrbios paulistanos e ampliado pela desvalorização salarial pressionada pela inflação galopante e a existência de um gigantesco “exército industrial de reserva”. Soma-se a isso a grave crise econômica  em que mergulhou o país no início dos anos 90, culminando em arrocho salarial e mais desemprego.

A somatória de “crise econômica + arrocho salarial + desemprego” resultou em mais ocupações de áreas irregulares, fundos de vales e de encostas íngremes que foram ocupadas por um contingenciamento de despossuídos de moradias[26], os quais, em comunidade, levantavam seus barracos com refugo de material de outras construções. Por  uma questão de sobrevivência, esses moradores passaram a ocupar áreas insalubres e de risco, comum também em Perus.

 

Imigrantes/refugiados acolhidos em bairro multicultural

A multiculturalidade da cidade de São Paulo está inserida em sua própria história. Desde a segunda metade do século XIX os italianos fugiam de sua terra em busca de melhores condições de vida, se acomodando em maioria, nas lavouras de café. Ao longo do processo de industrialização do século XX, as guerras mundiais empurraram outras nacionalidades para o Brasil, somando aos fluxos migratórios internos, sobretudo com os nordestinos que abandonavam a seca do sertão para tentar a vida na capital paulista.

Não há dificuldade alguma em afirmar que os imigrantes são a principal marca da construção da cidade de São Paulo. Esta vocação acolhedora paulistana vem sendo potencializada desde a década de 1990, por conta de levas de refugiados, principalmente do continente africano, Oriente Médio, América Central e também da América do Sul, que se encontram em estado de emergência humanitária.

Sendo assim, a perseguição a grupos étnicos, políticos e religiosos como no Sudão, Guiné Equatorial, República Centro-Africana, Zimbábue e Etiópia, somado às guerras civis como na Líbia e Iraque, vem produzindo nas últimas décadas, quantidade imensa de refugiados com destino à União Europeia e Estados Unidos, tradicionalmente conhecidos pela forte economia, democracia pujante e oportunidades de emprego.

No entanto, as duras restrições para a entrada de refugiados nas potências do hemisfério norte fizeram do Brasil, no hemisfério sul, uma segunda opção. Graças à multiculturalidade de povos, somado à Lei 9.474/1997[27], a qual nasceu dos tratados internacionais de refugiados, que vem engrossando assim a massa de imigrantes refugiados em solo brasileiro. E, a saber, atualmente, venezuelanos e haitianos somam ao mosaico da imigração brasileira.

Esta cidade que acolhe os imigrantes e refugiados, é na maioria das vezes – em diferentes contextos – a mesma que produz condições de segregação socioespacial, produzindo assim novos processos históricos.

Se por um lado, há mais de um século, a presença italiana, espanhola e portuguesa na cidade de São Paulo foi a principal marca da paisagem social urbana, misturada com índios, negros e mulatos, configurando na maior cidade do Brasil um território multiétnico, por outro, a mão de obra desses contingentes foi essencial para a constituição de um mercado de trabalho na cidade, que impulsionou – como é até hoje – a economia nacional, atraindo cada vez mais sonhadores de um simples emprego, com uma simples renda.

 

A vez dos haitianos[28]

Desde 2010, o Haiti, na América Central, é comumente noticiado como um país que enfrenta catástrofes naturais, conflitos políticos e crises econômicas. Uma nação em que pelo menos 3 milhões de habitantes ainda sofrem as consequências do abalo sísmico de quase uma década atrás, o que levou a óbito cerca de 300 mil pessoas.

Na ocasião, o Brasil foi noticiado como uma nação que abriu as portas para a entrada dos refugiados da catástrofe haitiana, no entanto, é o mesmo país que fechou as portas negando condições de exercício de um trabalho legalizado, resultando num aumento da exploração da mão de obra, como também, a marginalização e a intensificação dos trabalhos informais, fazendo dos refugiados, um exército de miseráveis pelas ruas da maior metrópole da América do Sul, os quais eram oportunamente e por um curto período de tempo, aproveitados em obras da construção civil  durante a preparação para a Copa do Mundo.

É somente com o fim das festividades futebolísticas que o Brasil entrou em forte recessão, acumulando obras inacabadas de norte a sul no país. Para mensurar-se a discrepância, em 2015, com o aprofundamento da crise brasileira, os haitianos começaram a sair do Brasil em direção aos Estados Unidos, México e Chile, até mesmo rumo a países como Peru, Bolívia e Colômbia.

Este fato foi duramente criticado por entidades de direitos humanos que culpam o governo federal por demagogia, contribuindo para a desorganização e desarticulação entre as esferas federais, estaduais e municipais.

Portanto, em todo território nacional, a cidade de São Paulo e sua região metropolitana continuou ainda sendo de interesse dos refugiados do Haiti, um lugar que ainda se oferecia rarefeitas atividades remuneradas, tanto na área da construção civil, como em setores de alimentação.

 

Perus, território educativo! Um lugar de acolhimento dos haitianos

 O termo “território” é aqui compreendido pela ótica do livro Territórios Educativos – Experiência em Diálogos com o Bairro-Escola, organizado pela socióloga Helena Singer, a qual define território como um “espaço de produção e de relação”; “produto da dinâmica social onde se tencionam sujeitos sociais”. Quando insere-se a palavra “educativo”, o leque é aberto, remetendo a uma concepção abrangente que se relaciona com a amplitude da “socialização” por meio da “educação”.

Por esta ótica, Perus é, portanto, um território educativo que reproduz por meio da educação sua própria história:  uma história de acolhimento às pessoas de todos os lugares do Brasil e do mundo. O que não poderia ser diferente com os próprios refugiados do Haiti.

Os haitianos, no Brasil, enfrentam uma série de dificuldades. Dentre tantas, a principal é a barreira linguística que afeta diretamente a educação, a empregabilidade e a autonomia de ser livre, num país livre. Posto isso, em Perus, o Centro de Integração de Educação de Jovens e Adultos (CIEJA) atende diariamente mais de 800 cidadãos haitianos que vivem na região, sendo que cerca de 450 estão matriculados na unidade escolar do bairro, fazendo do CIEJA Perus I, a maior escola em número de imigrantes da capital.

Curiosamente, o movimento migratório de haitianos que vem acontecendo desde 2010 até o presente momento, passa desapercebido pelos moradores do bairro. Com isso, há poucos estudos sobre o fenômeno da massiva onda de imigrantes no bairro da Zona Noroeste de São Paulo.

Figura 2 – Haitinos recebido no mutirão social. Fonte – Boletim SPM Informa. Ano 11, Edição 78.

Figura 3 – Haitianos atendidos pelo CRAI e CRAS. Fonte – SCPMS.

Figura 4 – Estudantes haitianos no CIEJA Perus I. Fonte – Portal Aprendiz.

Em entrevista com os haitianos do CIEJA Perus I, foi possível traçar um panorama dos motivos pelos quais eles escolheram o bairro paulistano para viver. Um desses motivos é a facilidade de acesso[29] para a capital onde encontra-se ocupações na região da baixada do Glicério; porém, o principal motivo é a proximidade da cidade de Cajamar, que conta com seu parque industrial maior que as cidades de Caieiras, Franco da Rocha e Francisco Morato juntas, oferecendo aos imigrantes emprego e oportunidade.

Desta forma, os primeiros haitianos a se estabelecerem no bairro de Perus foram atraídos pela ação dos contratantes de grandes empresas limítrofes à capital paulista, onde segundo relato, os empregadores ofereciam moradia e alimentação em troca dos serviços prestados. Não obstante, os imigrantes têm uma longa história de venda de mão de obra barata devido à falta de formação. No caso dos haitianos em Perus, isso não foi diferente, uma vez que se encontram trabalhando como ajudantes de pedreiros, em frigoríficos, postos de gasolina, indústrias e em setores alimentícios.

 

Haiti é aqui[30]:  a prática dos direitos humanos na vida cotidiana dos haitianos em Perus

A iniciativa do CIEJA Perus chama a atenção pela prática do exercício do direito do ser humano por meio do acolhimento, cuja finalidade é formar e orientar os imigrantes haitianos para um caminho seguro de preservação dos seus direitos. Haja vista, que pelo simples ato da assinatura da matrícula, o imigrante já tem garantido muito além do direito de estudar algumas disciplinas curriculares, pois passa a ter acesso às políticas públicas, oportunizando a alimentação diária, passe livre e outros benefícios que o documento de estudante em solo brasileiro oferece, além de poder ser mapeado para o atendimento às suas reais necessidades.

Isto é, a prática do CIEJA Perus I é resultado da formação que os educadores da unidade escolar tiveram ao longo do ano de 2016 com o projeto Migração como direito humano: rompendo o vínculo com o trabalho escravo[31]. Projeto este que recebeu apoio do Ministério do Trabalho, além de ser realizado em parceria com a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, alcançando 330 professores de 5.108 alunos da rede pública, e mais 983 pessoas da comunidade extraescolar, totalizando 6.796 pessoas.

A partir de então, o CIEJA Perus I reuniu a equipe escolar para pensar formas de criação de diálogos intercultural, que ampliasse as interações entre os estudantes brasileiros e haitianos. Com esse empenho, foi então sugerido a adesão da proposta do Bairro-Escola como espaço de aprendizagem compartilhada e articulada com a comunidade, tendo em vista a promoção de condições necessárias para o desenvolvimento integral dos alunos, convertendo a escola em um espaço de acolhimento para o cidadão que convive socialmente no mesmo território.

Tradicionalmente, a escola já é em todos os tempos e espaços, um lugar de práticas de relação com o ensino-aprendizagem, que em sua vocação busca o desenvolvimento do ser humano em seus múltiplos aspectos: intelectual, emocional, físico, social e cultural. A proposta do Bairro-Escola, portanto, vai além da vocação da escola, visa a valorização do ser humano tanto na sua própria história e cultura, como na história e na cultura local.

Um dos maiores objetivos do Bairro-Escola é criar condições para que os jovens do território se desenvolvam integralmente, ou seja, em todas as suas dimensões – intelectual, física, afetiva, social, simbólica. Para tanto, faz-se necessário compreender que em um território educativo estão garantidas as condições para a formação de cidadãos autônomos, com a ampliação de seu repertório sociocultural e o fortalecimento de sua capacidade associativa e de participação ativa na sociedade. Um cidadão pleno de direitos e participante ativo nas decisões que afetam sua comunidade constitui-se com base no desenvolvimento de seu corpo, de sua singularidade, de sua capacidade reflexiva e de suas habilidades para a comunicação e a criação. Por isso, as condições de vida das crianças, dos adolescentes e dos jovens de um território precisam ser conhecidas no início do processo.[32]

Em consequência à citação supracitada, nasceu então, no CIEJA Perus I, o projeto “O Haiti é aqui… em Perus!”, inserindo em seu Projeto Político Pedagógico – PPP a valorização da cultura haitiana local por meio de articulações com a comunidade, associações e com o setor privado. Logo, um novo currículo escolar foi construído conjuntamente aos estudantes, com objetivo de endereçar as demandas diagnosticadas pela escola.

Com isso, no novo currículo, a Língua Portuguesa recebeu significativo reforço com aulas todos os dias da semana, somado às disciplinas de História e Geografia focadas no conteúdo dos saberes relacionados à própria cidade de São Paulo. A saber, em entrevista com os professores, o novo currículo foi pensado para respeitar o conhecimento trazido do Haiti, atendendo aos interesses dos alunos haitianos e valorizando as leituras de mundo. Para isso, na prática, o novo currículo teve por objetivo a reparação de direitos para os adultos que não tiveram a oportunidade de concluir o Ensino Fundamental.

No entanto, o novo currículo do CIEJA Perus I, foi apenas uma parte do processo de ensino-aprendizagem. Faltava ainda um componente que integrasse os alunos brasileiros e haitianos, já que havia estranhamento dos estudantes brasileiros em relação aos sons das vozes pelos corredores: o creole e o francês, os quais foram identificados pelos professores como uma barreira linguística que no mesmo espaço escolar distanciava fisicamente os estudantes, promovendo a formação de grupos separados.

A equipe docente, sentindo-se incomodada com a situação, buscou um elemento integrador que garantisse uma imediata aproximação e sensibilização de todos os estudantes. O caminho: uma festa típica com comida e elementos da cultura haitiana. Essa Festa Cultural, que já estava agendada para junho de 2017, tinha por objetivo apresentar elementos desta cultura, como culinária, música, vestimentas e a história do país, revertendo assim, o cenário de isolamento dos haitianos.

A equipe criou ainda uma Feira Cultural Haitiana, para que todos pudessem entender quem eles eram, de onde vinham e porque vinham. Com essa iniciativa, essa integração aproximou os alunos brasileiros e haitianos, potencializando o conhecimento para todos. A partir de então, os haitianos passaram a falar com orgulho e carinho da sua nação. Sentiram-se acolhidos pelos brasileiros ávidos por conhecer a nova cultura. Complementando, Paulo Freire nos lembra que […] a ação política junto aos oprimidos tem de ser, no fundo, ‘ação cultural’ para a liberdade, por isto mesmo, ação com eles”[33]. Ou seja, na essência de Freire, tem-se o significado do projeto “O Haiti é aqui… em Perus!”.

O Centro de Educação de Jovens e Adultos em Perus, com este projeto, recebeu do Instituto Ohtake em parceria com a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, assim como o patrocínio da Universidade Estácio de Sá, o prêmio “Territórios Educativos 2017”. Para ter-se ideia, este ano, o Instituto recebeu 67 inscrições originárias de todas as Diretorias Regionais de Ensino do Estado de São Paulo e de diversos tipos de unidades escolares particulares e municipais. Posto que o prêmio busca reconhecer e fortalecer experiências pedagógicas que empreendem as potencialidades educativas do território onde a escola está inserida, integrando os saberes escolares e comunitários.

O CIEJA Perus I destacou-se dentre todos os projetos devido a dedicação às aulas de português e orientações para utilização dos serviços públicos na cidade, somado à promoção da integração dos haitianos com a comunidade local por meio de atividades culturais, integrando pessoas de diferentes culturas e abrindo portas do conhecimento, dando oportunidades para ambas as partes.

No entanto, vale ressaltar que, ao término do primeiro semestre de 2019, centenas de alunos foram identificados com escolarização superior à oferecida na unidade escolar. Logo, uma nova reorganização do currículo será necessária, o que obriga o corpo docente a passar por uma nova reflexão com ações de replanejamento, buscando a criação de novas formas de integração.

 

Conclusão

Durante todo o levantamento de dados para a elaboração deste artigo, como também as entrevistas e conversas com professores e alunos brasileiros e haitianos no CIEJA Perus I, foi possível enveredar por vários caminhos que levam a um lugar: o amor por um povo através da educação.

Também foi possível relacionar a localização e a história do bairro paulistano de Perus com a história de vida dos refugiados do Haiti, os quais foram acolhidos por uma unidade escolar, que vem exercendo na prática os direitos humanos não só no chão da escola, mas em um território que educa.

Um povo que fala por si, que mostra para o brasileiro o privilégio de se viver em um país multicultural, democrático e liberal. Um país onde todos os povos têm muito a dizer, e são livres para dizer, não só pela língua, mas também pela alimentação, música, poesia, arte, história, tradição e religião, ou seja, pelas diferentes manifestações culturais.

Os professores do CIEJA Perus I ousaram e conseguiram transformar o lugar de uma escola inserida num bairro em um “bairro-escola”, isto é, um território com potencial educativo, usando a prática para a fomentação do encontro de culturas, sendo inclusive reconhecidos e premiados por este feito.

Sendo assim, o projeto “Haiti é aqui… em Perus!”, do CIEJA Perus I, vem contribuindo diretamente para reconhecer o tradicional bairro da Zona Noroeste de São Paulo como um bairro que educa, que acolhe, que tem em sua história a tradição de migrante e imigrante. Um bairro-escola onde os haitianos não só aprendem a Língua Portuguesa, História e Geografia da cidade de São Paulo, como também encontram portas de acesso às políticas públicas por meio da escola, usufruindo evidentemente dos mesmos direitos que qualquer outro cidadão no Brasil.

Vale ressaltar que, ao falar de migrantes haitianos, fala-se de negros da língua francesa, onde muitos buscaram outras nações como Estados Unidos e países da União Europeia, assim como pela história de vida sucedida. Em consequência, esses povos frustraram-se em muitas nações ricas do hemisfério norte, enxergando o Brasil como um país diferente, sem muros; que acolhe, que oferece oportunidades de emprego, renda, educação e acesso aos direitos e às políticas públicas.

Portanto, mesmo diante do racismo pontual, bem diferente do racismo estrutural americano, o CIEJA Perus I não deu ênfase aos discursos que promovem a vitimização; por consequência, levam as divisões e tensões entre grupos e povos. Na prática, os professores investiram no exercício da valorização do outro por meio da formação e do encontro entre culturas, exemplificando em ações desenvolvidas de forma concreta, que demonstram que de fato a Educação é uma eficiente ferramenta para a manutenção e preservação dos direitos humanos.

 

Referências

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AZEVEDO, Aroldo de. Subúrbios Orientais de São Paulo. São Paulo: Editora Nacional, 1957.

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CANEVACCI, Massimo. A cidade polifônica: Ensaio sobre a antropologia da comunicação urbana. São Paulo: Editora Nobel, 2004.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 7.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

LANGENBUCH, Juergen Richard. A Estruturação da Grande São Paulo, Estudo de Geografia Urbana. Rio de janeiro: IBGE, 1971.

LEFEBVRE,  O direito à cidade (5º Ed.). São Paulo: Editora Centauro, 2008.

MARTINS, Ana Luiza. República um outro olhar (2º Ed.). São Paulo: Editora Contexto, 1989.

___________________. História do Café. São Paulo: Editora Contexto, 2008.

SINGER, Helena.  Territórios Educativos (2º Ed.). São Paulo: Editora Moderna, 2010.

 

[1]. CANEVACCI, Massimo. A cidade polifônica: Ensaio sobre a antropologia da comunicação urbana. São Paulo: Editora Nobel, 2004.

[2]. https://www.emplasa.sp.gov.br/RMSP (Acesso em 20/07/2019).

[3]. http://www.ppegeo.igc.usp.br/index.php/rbg/article/view/7818/7245 (Acesso em 20/07/2019).

[4]. A Ingleza (com “z”), assim era conhecida a São Paulo Railway Company, empresa inglesa responsável pela construção da primeira ferrovia do Estado, que entrou em operação em fevereiro de 1867. O primeiro trecho, de 139 km ligava o porto de Santos a Jundiaí.

[5]. LANGENBUCH, 1971.

[6]. MARTINS, 1989, p. 30.

[7]. LANGENBUCH, 1971.

[8]. ______________, 1971.

[9]. https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/bibliotecas/bibliotecas_bairro/bibliotecas_m_z/padrejosedeanchieta/index.php?p=5572 (Acesso em 20/07/2019).

[10]. Entende-se que o Migrante é a pessoa que muda de país ou região periodicamente, enquanto que o Imigrante é aquela pessoa que chega a um país que não é o seu.

[11].Linha 7 – Rubi da CPTM é a linha mais longa de toda a rede metro-ferroviária de São Paulo, com 60.5 km de extensão, ligando a Estação da Luz até Jundiaí. É também a única linha da CPTM que possui uma estação terminal fora da Região Metropolitana de São Paulo, em Jundiaí. Esse trecho é parte construída pela extinta São Paulo Railway Company, sendo inaugurada em 16 de fevereiro de 1867. Até março de 2008, denominava-se Linha A – Marrom.

[12].  A SP-330 enquadra-se na definição de “autoestrada de classe especial”, pois sua função destina-se exclusivamente ao trânsito rápido de automóveis, ligando uma região a outra, sem cruzamentos.

[13]. A DERSA (Desenvolvimento Rodoviário S.A.) foi a primeira operadora de rodovias do Brasil e da América Latina a implementar um sistema de ajuda aos usuários de suas rodovias, prestando serviços de guincho, socorro mecânico e primeiros socorros, de forma gratuita.  Atualmente, a DERSA é considerada a melhor empresa estatal para administração de rodovias.

[14]. A SP-332 é uma centenária rodovia do estado de São Paulo que liga a capital até a cidade de Campinas, recebendo em seu trajeto as seguintes denominações: de São Paulo até a cidade de Caieiras, passando pelo bairro paulistano de Perus: Raimundo Pereira de Magalhães; De Caieiras até de Jundiaí passando por Francisco Morato: Presidente Tancredo de Almeida Neves; De Jundiai até Valinhos: Vereador Geraldo Dias; De Valinhos até Campinas: Visconde de Porto Seguro.

[15]. BRUGGEMANN, 2007, p. 60.

[16]. PEREIRA, Valdinei. São Paulo e Rio de Janeiro: Hipermetrópoles, turismo e moda como economias culturais do espaço. Tese de Doutoramento – USP; 2010.

[17]AZEVEDO, 1958. p. 7.

[18]. http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/36096/38817  (Acesso em 21/07/2019).

[19]. MARTINS, 1989, p. 32.

[20]. _____________ p. 33.

[21].  LANGENBUCH, 1971, p. 129.

[22]. __________________, p. 130.

[23].  AZEVEDO, 1958, p. 10.

[24]. http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=24161 (Acesso em 21/07/2019).

[25]. MEIRELLES & ATHAYDE, 2014, p. 17.

[26]. SPOSITO, 1994).

[27]. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9474.htm (Acesso em 22/07/2019).

[28]http://www.arquivoestado.sp.gov.br/imigracao/.

https://mundoeducacao.bol.uol.com.br/geografia/imigracao-haitiana-no-brasil.htm.

https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2018/07/05/internas_economia,692974/presidente-emdoc-brasil-perde-ao-dificultar-entrada-de-imigrantes.shtml.

https://brasilescola.uol.com.br/geografia/composicao-etnica-brasileira.htm.

https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunas/copa-oportunidade-que-se-transformou-em-crise/ (Acessos em 22/07/2019).

[29]. Segundo relato dos próprios haitianos, a estação ferroviária de Perus até a estação ferroviária da Luz são cerca de 40 minutos de viagem, e com a baldeação para a linha Azul do Metro são mais 10 minutos até a estação do Metro Liberdade. Por fim, há mais 10 minutos de caminhada, chegando-se até o Glicério. São, ao todo, cerca de 32 km, percorrido em média, por uma hora.

[30]. https://www.youtube.com/watch?v=rkTHzZfhbgM (Acesso em 23/07/2019).

[31]. http://escravonempensar.org.br/biblioteca/migracao-como-direito-humano-rompendo-o-vinculo-com-o-trabalho-escravo/ (Acesso em 23/07/2019).

[32].  SINGER, 2015, p. 13.

[33]. FREIRE, 1979, p. 57.