As cidades se especializaram e definiram a sua função principal como resultante de algo que desse muita renda e trouxesse muitos dividendos para os municípios, demonstrando a riqueza e a importância da região. Raras são as cidades que se distanciam dessa visão empreendedora – expressão da moda -, para se voltarem a outras estruturas e outros interesses. Algumas cidades têm um aspecto mais religioso, outras mais militares, outras mais administrativo, até mesmo são planejadas para cumprir esta função; mas, nenhuma é conhecida por sua vocação à educação, salvo Coimbra.  Mesmo que haja relatos falando de universidades famosas em algumas cidades, e de onde surgiu a primeira universidade, ainda assim, não permanece a ideia e a imagem de uma cidade voltada para a educação. Coimbra carrega essa imagem e se insere no imaginário dos estudantes, como tal – uma cidade voltada para os estudos, quase uma cidade-escola. A Universidade de Coimbra, criada no séc. XIII, por D. Dinis I, não conta sua história em totalidade, considerando-se os seus edifícios que recepcionam os que ali chegam. A praça principal da entrada da cidade universitária, com sua faculdade de Medicina, Biblioteca e outros edifícios administrativos, tem um aspecto da arquitetura do período de Salazar (arquitetura moderna/Estado Novo); somente quando se transpõe estes prédios, após pagar os tíquetes de entrada, e se adentrar a uma outra parte, ao Pátio das Escolas, é que vemos os edifícios mais antigos, como a biblioteca Joanina, cujos livros são protegidos por morcegos, que se escondem atrás das estantes durante o dia, e caçam os insetos, à noite. A visita a este local é controlada e com acesso restrito. Nessa área mais histórica da universidade estão os prédios que antecedem o período salazarista e que foram a base da criação da universidade – a capela de São Miguel, a Faculdade de Direito, o Palácio dos Grilos/Residência dos Professores, etc. – que já nascia com um padrão de excelência.

Pois bem, não me lembro de uma outra cidade que tenha essa vocação, tão fortemente marcada, e que tenha tido a universidade como polo de desenvolvimento. O que acontece com as cidades, é que, na setorização, algumas áreas são privilegiadas com a implantação de escolas e campi universitários que propiciam uma outra ambientação, criando territórios que se assemelham a pequenos burgos, com seus habitantes fortemente armados ideologicamente e com os limites institucionais fortemente marcados; como o território do Mackenzie, da USP, da Uninove, da FMU, etc. Estes territórios são ilhas educacionais dentro das cidades, que modificam a utilização do espaço urbano e o comportamento de seus moradores, pois  quando não é período letivo a dinâmica do território é alterada e esvaziada, de tal modo, que até o ruído característico do vozerio dos alunos faz falta. Há um esvaziamento intenso, que até o ar parece parar. Durante as aulas, as ruas são ocupadas, o riso e as falas angustiadas são ouvidas por todos os lados, e os sonhos de futuros enchem as ruas…ali estão os representantes do devir, alunos, aparentemente irresponsáveis, como muitos dizem. A cidade reconhece com isto seus cidadãos em busca de formação/capacitação para a construção de seus futuros; futuro daqueles que um dia a administrarão.

Quando estas “ilhas” não existiam, estes lugares eram espaços comuns, com pouca ou nenhuma especulação imobiliária; espaços fadados a uma provável decadência urbana, e a uma degradação humana, onde a violência encontraria uma área de atuação e “proteção” reificando o local, a exemplo de outras regiões da cidade de São Paulo. Digo, transformando o imaginário do local em um imaginário sintematizado – para quem olha de fora -; ou seja, enquanto o símbolo é plurívoco, expressão cultural concreta do arquétipo, cuja especifidade se dá pela influência do meio físico e cultural, o sintema é uma degradação do símbolo em sinal meramente social, em que perde a riqueza plurívoca e se torna um esteriótipo rígido, segundo G. Durand (1994, p. 60)[1], que se apoia em René Alleau, que diz que ao se inteirar dos particularismos culturais, o símbolo perde a sua plurivocidade, distanciando o significante do significado, transformando-se em sintema[2] – do símbolo às alegorias convencionais estabelecidas pela sociedade para uma boa comunicação; ainda R. Alleau.

É assim, que vemos a Avenida da Liberdade, um bairro japonês em São Paulo, se converter em um território da educação, com grandes “empresas” educacionais disputando cada palmo deste território pela localização central e facilidade de locomoção dos alunos, dada pela proximidade de estações de metrô e pelas inúmeras linhas de ônibus que passam pelo local. A avenida da Liberdade se transformou em uma passarela educacional onde grandes Instituições de Ensino Superior se estabeleceram devido a facilidades urbanas de locomoção; assim, acontece na região do Memorial da América Latina. O que se deve observar é que estas grandes Instituições Educacionais mobilizam, não somente os estudantes, mas uma gama de comércio de alimentação, principalmente. Antes mesmo da chegada dos estudantes, os vendedores de café e lanches chegam. O que antes era um espaço de quietude e pouco movimentado, bem cedo, começa a ser ocupado, a adquirir uma movimentação peculiar, que depende exclusivamente do período letivo. O comércio informal marca a sua presença e demonstra o nível de desemprego na cidade, intervindo no uso do espaço urbano. Isto permite pensar a cidade para todos, como uma forma de integração de classes sociais e de multiplicidade de usos. Há uma aproximação dos diferentes estratos sociais, em que todos são apenas pessoas, independentemente de qualquer diferença econômica, ou de qualquer preconceito, porque junto com os vendedores de comida, os guardadores de carros – os flanelinhas -, também, vêm e, dentre eles, alguns drogaditos em busca de uns trocados para comprarem as suas drogas. Há uma liberdade nos espaços circundantes a estas “ilhas”, como deveria ser em todo o espaço urbano. Os olhos da vigilância urbana se semicerram, nestes locais; infelizmente, os olhos da vigilância interna se abrem – apesar dos muros e catracas – para protegerem o pequeno feudo. É interessante refletir nestes locais a partir de um referencial histórico, como os castelos e catedrais construídos na Idade Média: a movimentação e o estabelecimento dos pobres, próximos às áreas de edificação para a venda e troca de seus produtos, como forma de sobrevivência. Mas, também, é preciso pensar estes territórios como espaços sintematizados, dentro da cidade; posto que, a inserção destas Instituições altera a história e os costumes do local e não cria um fato histórico que integra Instituição e local; o local é meramente interessante comercialmente; no processo de inserção destas instituições não é considerada a história anterior do local e nem a história de vida dos habitantes da redondeza, mesmo que o local estivesse fadado à decadência. Na Barra Funda, o “nó” de mobilidade – trem, metrô e ônibus – é o fator interessante e na Av. Liberdade, o eixo de ligação centro-bairro e a facilidade de transporte.

Se em algum tempo e lugar, a questão da educação foi fator ordenador do espaço e do imaginário urbano, hoje, estas instituições, que perderam em essência seu simbolismo, distanciando-se do seu significado, mesmo que formem e capacitem muitos alunos, não se pode negar que há uma preocupação financeira, que visa o lucro, sobrepondo-se a uma ideia de educação e cultura. E o romantismo idealizado e simbólico da formação humanista dos estudantes, e até mesmo do lugar, transforma-se em sintemas urbanos. Alguns lugares mantêm o seu simbolismo, como a Rua Maria Antonia, com a Universidade Mackenzie e a Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras (hoje Centro Universitário Maria Antonia) da USP.

Isto não quer dizer que deveria haver um lugar específico para as escolas na cidade, mas que no processo de instalação destas instituições – e aqui podemos ampliar para toda e qualquer instituição -, a história e a cultura do lugar deveriam ser consideradas para criarem lugares de símbolos, e haver uma integração entre o espaço urbano, os moradores, os alunos, os trabalhadores informais e as escolas.

Ainda há muito o que pensar sobre este assunto…os sintemas urbanos.

[1] DURAND, Gilbert- L’Imaginaire – essai sur les sciences et la philosophie de l’image. Paris: Hatier, 1994.

[2] ALLEAU, René – La Science des symbole. Paris: Payot, 1976.