A saga empreendida por uma das primeiras professoras de Caieiras que desafiava impossibilidades a bordo de um caminhão para lecionar dentro da fábrica de papel
Talvez tenhamos de começar a matéria buscando explicações para longevidade, à luz da medicina. E ela nos mostra que a genética (em determinadas combinações de genes) é responsável por 30% da longa vida. E 70% é a maneira que a pessoa vive. As pessoas que se estressam muito, ao longo da vida, normalmente, não duram muito tempo,” já sustenta a ciência que vem avançando no tratamento de doenças crônicas, dispensando maior parcela de atenção à qualidade de vida e investimento em saúde coletiva.
Mas a nossa narrativa se prende à pessoa de Rotraut Friese Nunes, popularmente conhecida como “dona Tico”. Filha do casal paulistano Georg Hermann Friese e Catharina Friese, nasceu aos 9 de fevereiro de 1919, em São Paulo. Recentemente, completou 100 anos sob uma lucidez impressionante, na cidade onde escreveu praticamente toda a sua história enquanto profissional, mãe, avó e bisavó. É tanta vida que mesmo nesta idade, opta em viver em sua casa a dividir espaços com filho, netos ou qualquer outro parente.
“Tico porque assim que nasceu, se tratava de uma criança de pequena estatura, o que convencionou que seus pais chamassem-na de ‘um tiquinho de gente’ e os anos passaram e ficou Tico,” explica um dos filhos, o educador Pedro Sérgio Graf Nunes, recuperando na memória a origem do apelido dado à sua genitora a quem visita regular e diariamente.
De família aristocrática, “dona Tico” estudou em um dos colégios (era assim que se chamava) mais tradicionais da capital paulistana – o “Caetano de Campos”. No currículo, como explica o Anuário do Ensino do Estado de São Paulo de 1907/1908, se ministrava Gramática, Aritmética, Geometria, Caligrafia, Lógica e Religião, além da formação dos docentes. E “dona Tico” se graduou professora habilitada a lecionar para as séries primárias, conforme se denominava à época.
Assim que contraiu núpcias com Guilmar Graf Nunes, se dirigiu a Caieiras, onde o marido fora admitido na qualidade de funcionário da Companhia Melhoramentos de São Paulo. Fixaram residência nas dependências da fábrica. “Nossa casa fazia frente com os fornos de cal da companhia. Foi ali que nascemos,” relata Pedro Sérgio Graf Nunes, fazendo alusão ao único irmão, Carlos Alberto, falecido.
Dada ao trabalho desde cedo, “dona Tico ousou desafiar o meio em que vivia para exercer o magistério. A única escolinha existente na cidade funcionava nas dependências da própria fábrica, num vilarejo denominado Bom Sucesso. A única forma de acessar a comunidade era a bordo de um dos caminhões que compunham a frota da fábrica, dividida entre os famosos L385 “Viking” e “L395 “Titan”, FNM’s D 11000 e podia ir parando por aí.
“Não era como hoje, onde tudo é dividido direitinho, série por séries, enfim. Na pequena sala improvisada, eu me deparava com alunos de 1ª série mas também tinha de lecionar para outros que estavam em séries diferentes. Então, era o que chamávamos de escola mista. E graças a Deus cumpri com o meu dever de maneira fidedigna,” recorda.
Anos mais tarde, foi construída a primeira escola na área centralizada da companhia – a “Alfried Weiszflog”, no local denominado como “Fábrica”. Ali se aposentou. “Mas anote aí: aposentei de uma forma incrível. A legislação previa que o professor trabalhasse 25 anos e se aposentasse. Quando estava prestes a completar o tempo de serviço, a legislação mudou e passou para 30. Em meio àquela transição, o tempo voltou aos 25 anos de contribuição quando já tinha trabalhado anos para mais. Doei um pouquinho mais de mim em prol da educação”, considera.
A cidade de Caieiras rende homenagem a professora “Dona Tico”
A vida se fabrica por si própria, entre envelhecer e resistir. Chegar aos cem anos ou ir além não é só caminhar com a história, atravessar o mundo lá fora. É, principalmente, vencer os altos e baixos do tempo, empreender uma travessia pelo mundo dentro de si. “Dona Tico” é prova contumaz dessa realidade.
Envelhecer é atingir uma insustentável leveza de nós mesmos. Há perdas e ganhos – a mensuração é individual, muito particular. De modo geral, audição, visão, força, memória, cognição se desgastam; o organismo já não se defende bem, a pele desidrata com facilidade, o pensamento freia. A senhora de 100 anos que caminha por este texto pode ser tida como “ponto fora da curva”, vez se manter lúcida o bastante para não apenas recordar de áureos tempos de sua vida como e principalmente desfrutar de um envelhecimento com total dignidade.
Há dez anos, familiares tiveram uma ideia interessante. Em contato com amigos da neta, encomendaram um vinho exclusivo, suave, que foi utilizado para brindar os 90 anos de “dona Tico”. Ela participou ativamente da homenagem, manifestando gratidão aos que tiveram a interessante iniciativa. Detalhe: o rótulo das garrafas, oferecidas aos que fizeram parte do banquete, exibia uma foto da aniversariante. Algo que emocionou.
Por fim, resta-nos alguma lucidez – que é, para a medicina, a capacidade de conversar, ter certa autonomia e orientação no tempo e no espaço. Resta-nos o que somos, o que a vida é. Talvez seja a sabedoria, isto é, o encontro de toda a existência, é onde você é capaz de ver o sentido real da vida. Na velhice a pessoa tem a possibilidade de ser feliz em toda a sua existência.
“Chego aos 100 anos feliz. Realizada,” resume “dona Tico”. Feliz aniversário!
Por Célio Campos.