Por várias vezes, a cidade foi mostrada, direta ou indiretamente, como um refúgio; talvez, o refúgio último do ser humano – entendendo por refúgio, a proteção dos diferentes, dos bárbaros, dos perigos naturais, feras, intempéries, etc, de tudo aquilo que causava medo ou morte; mesmo que estas circunstâncias, com o tempo, tenham se transferido para dentro do perímetro da cidade. O que poderia haver para além da cidade? Qualquer outra possibilidade resultará sempre numa aglomeração humana, que resultará em uma forma ambiente que repetirá a estrutura já conhecida do ambiente urbano. Então, quando a cidade poderá ser diferente da cidade? Somente quando for estudada e analisada na sua dimensão simbólica; não para justificar o seu sentido de Refúgio, mas antes, para compreender seus actantes, seus mitemas, e, consequentemente, descobrir sua dimensão mítico-simbólica e seu(s) mito(s) reitor(es).
Em muitas análises, a cidade, mesmo sendo um substantivo feminino, recebe atributos masculinos, com o falo – prédios, obeliscos, monumentos, torres, elementos que se erguem para além da altura dos telhados -, permitindo ser denominada de cidade fálica; reduzindo o significado do falo, tirando-lhe o aspecto da força criadora do Lingam – energia potencial de Deus; Shiva, o Transformador. A masculinização da cidade, dada pelo aspecto físico do seu desenvolvimento, não permitiu que o seu significado transcendesse o seu próprio sentido, prendendo-a a uma significação reducionista e de uma leitura viciada de um machismo secular – a cidade é feminina, mas a evolução é masculina -; mesmo que a palavra “evolução” seja substituída por progresso ou desenvolvimento – substantivos masculinos – ainda assim, não justifica a masculinização da cidade. É possível, aqui, recorrer ao conceito, de C. G. Jung, de animus, a representação arquetípica da potência masculina no feminino – desta forma o feminino da cidade fica salvaguardado, e a sua força simbólica, intensificada. A cidade evolui na sua dimensão feminina pela ação do animus, da potência masculina. Então, agora é possível dizer que a cidade – feminina – se desenvolve em animus – masculino -; há uma complementaridade que une os opostos, dando sentido de unidade à cidade. Nesta união, a cidade se institui como um ambiente com um ecossistema definido e, em alguns locais, ampliando o ecossistema rural, numa estrutura rurbana – dando uma outra dinâmica tanto à área rural quanto à área urbana (mas isto é para um outro momento). Mas, o mais importante são as forças míticas que operam neste ecossistema/ambiente, chamado cidade.
Para justificar esta complementaridade, esta junção de oposto, demonstrada por Jung, é preciso buscar em Gilbert Durand a base conceitual, sem querer fazer aqui um tratado, mas somente um devaneio, conforme G. Bachelard – algo como perder-se em reflexões poéticas em temas acadêmicos; poesia nas reflexões científicas.
Pois bem, no seu estudo sobre os Regimes de Imagens – Diurno e Noturno -, os Micro-Universos Míticos – Heróico, Místico e Sintético – são apontados como schèmesque estruturam o Imaginário do indivíduo ou do grupo, como um símbolo motor, para Bachelard. Assim, é possível compreender o shème como um conceito que une “os gestos inconscientes da sensório-motricidade entre as dominantes reflexas e as representações” (DURAND, 1989, 42)[1] –, que se relacionam com o ambiente natural e social, determinando os grandes arquétipos (ainda Durand). Numa aproximação rasteira, pode-se pensar nos schémes como actantes (cf. Algirdas Julien Greimas; 1917-1992) – participante ativo em qualquer forma de narrativa -; entendendo com Yves Durand(1988)[2], os actantes são dados intermediários, com função dramática, que organizam o pano de fundo dos acontecimentos sociais, dos dramas sociais; portanto, organizam os motivos cênicos dos acontecimentos, em relação a “um nó dramatúrgico estruturado segundo as modalidades relevantes da criação do imaginário” (Durand, 1988, 253)[3], assim “do mesmo modo que os componentes naturais adquirem uma significação arquetipal por meio de um sentido dado pelos schèmes, os componentes dramatúrgicos vividos e assimilados pelos schèmes, constituem os actantes” (idem, 254)[4]. Justificada a aproximação de schème e actante, pode-se buscar os mitemas – menor unidade semântica assinalada pela redundância no discurso – que desvelam o mito Fundador ou Reitor da narrativa; neste caso, as formas de ver e narrar a cidade.
Se a cidade se desenvolve em animus, conforme dito acima, pode-se compreender que na tripartição do Imaginário feita por G. Durand (1989)[5], a cidade se enquandra no Micro-Universo Mítico Sintético, já que une as forças opostas em um mesmo espaço; na cidade o refúgio está garantido, mas as disputas e as contendas, também. O que une separa num eterno ciclo em busca do sossego e da paz…jamais alcançada – somente em Shangri-lá…
Assim, o que se percebe como mitemas são fragmentos de discursos recorrentes que apontam para a agressividade, a violência, a conquista a separação (Regime Diurno de Imagem) e, simultaneamente, para o descanso e o repouso, a comunhão, a união (Regime Noturno de Imagem). No Regime diurno tem-se as forças do empreendedorismo, das mulheres que operam em animus. Simultaneamente, tem-se as mulheres que são as senhoras e gestoras do lar, que organizam o espaço e cuidam da família, protegendo-a. Essas mulheres são cerebrais como Atena, e se situam no Regime Diurno. Organizam seus espaços e muitas vezes são lideres natas de movimentos sociais que visam o bem-estar da comunidade, ou se organizam em grupos com propósitos de melhoria para áreas públicas esquecidas pelos gestores urbanos, ou mesmo pela melhoria das condições de mobilidade urbana – questão atual nas grandes cidades, principalmente. A essa cidade Diurna apresenta-se a sua complementaridade, a cidade Noturna, onde as forças do feminino operam com as mãe, esposas e amantes que acolhem e protegem carinhosamente suas famílias com um sentido mais religioso – no que há crença nos valores morais da constituição da família, dos bons costumes e da convivência pacífica entre os homens. Essas forças Noturnas, ampliam-se nas mulheres dos prazeres, nas prostitutas, nas amantes, nas que protegem os homens e os homens de outras mulheres. Essas forças actanciais que organizam os cenários urbanos, também, criam sistemas de circulação e deslocamento das pessoas pela cidade, formando uma trama pouco conhecida na organização de espaços públicos. Os caminhos das mulheres que protegem suas famílias podem até se sobrepor aos caminhos das meretrizes (que também protegem suas famílias), mas não se reconhecem, dada a força simbólica que os diferenciam. E nesta força simbólica pode-se perceber mitemas que apontam para os mitos de Atena – quando se trata da força feminina do empreendedorismo – ou das Amazonas – na batalhas mais agressivas que, em determinados momentos ignoram as qualidades da pólis -, em se tratando de um Regime Diurno de Imagem. Em se tratando de um Regime Noturno de Imagem, tem-se a presença de Héstia – a deusa do Lar, da vida doméstica, da família e do estado, e por outro lado Lilith – a “Lua Negra”, a despertadora de desejos, do malefício, das ações criminosas, “profanadora da semente humana” (Brill, 1988)[6].
Portanto, agora pode-se afirmar a característica de um Regime Noturno, de um Micro-Universo Mítico Sintético do tipo Duplo Universo Existencial Sincrônico, para classificar as forças do feminino na cidade. Esta denominação toda porquê? Por que a cidade vive ao mesmo tempo a pacificidade e a combatividade, representando duas ações temáticas, simultaneamente; com seus actantes se ajustando a cada situação e criando seus cenários míticos, definindo a ação de seus habitantes, e escrevendo suas estórias de vidas. As deusas apontadas pelos mitemas – que não foram apresentados em profundidade, dada a natureza do texto -, revezam-se, em algumas situações e em outras atuam juntas; mas sempre formando e tecendo o Imaginário urbano.
Texto dedicado a Prof. Drª. Helena N. Degreas.
[1] DURAND, Gilbert – As Estruturas Antropológicas do Imaginário. Lisboa: editorial Presença, 1989.
[2] DURAND, Yves – L’Exploration de l’Imaginaire: introduction à la modélisation des Univers Mythiques. Paris: L’Espace Bleu, 1988.
[3] Cf. nota anterior.
[4] Cf. nota anterior.
[5] Cf. nota 1.
[6] BRILL, Jacques – La Mère Obscure. Paris: L´Esprit du Temps, 1988.