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Por: Dra. Vanice Jeronymo

A influência da Família Weiszflog em Caieiras: trabalho, identidade e cotidiano

Uma caminhada em uma tarde tranquila de domingo, pelos bairros mais antigos de Caieiras pode ser um passeio bastante surpreendente e agradável. Os transeuntes mais atentos, irão identificar entre nomes de ruas e praças, construções e hábitos, resquícios da era industrial que deu impulso ao crescimento e desenvolvimento da cidade. Os caminhantes mais antigos, irão resgatá-los na memória.  

Como já é sabido por parte da população local, Caieiras tem origem operária. A cidade é fruto dos investimentos ferroviários e industriais que tomaram força no país em fins do século XIX. Aqui se desenvolveu, às margens da linha férrea da São Paulo Railway (SPR), uma das mais importantes indústrias brasileiras: a Companhia Melhoramentos de São Paulo. A empresa foi fundada pelo Coronel Antonio Proost Rodovalho, em 1890, a partir da embrionária produção de cal, tijolos, telhas e papeis em sua fazenda industrial. Entretanto, foi após os anos 1920, durante a administração de seus proprietários posteriores – a família Weiszflog – que a empresa tomou novos contornos.

 

A comunidade de trabalhadores iniciada ainda na gestão Rodovalho, contou com mão-de-obra de diversas procedências. Operários de diferentes nacionalidades que chegavam para trabalhar nas fábricas.

 

Naquela década, como nos mostra o historiador Hernani Donato, a Companhia Melhoramentos, já sem a participação do Coronel, ocorreu a incorporação da empresa à firma de propriedade dos irmãos alemães Otto[1], Alfried e Walther Weiszflog. A gestão da família alemã seguiu até pelo menos fins do século XX, quando também deu-se início ao desmonte das instalações, e é significativa sua influência nos modos de vida da população operária e seus descendentes.  

A comunidade de trabalhadores iniciada ainda na gestão Rodovalho, contou com mão-de-obra de diversas procedências. Operários de diferentes nacionalidades que chegavam para trabalhar nas fábricas assentavam-se nas moradias edificadas à luz dos modelos de casas de colonos. Durante a década de 1920, a estrutura do núcleo já apresentava um número significativo de construções, tais como os armazéns, moradias, escolas, entre outras. 

 

(…) após os anos 1920, durante a administração de seus proprietários posteriores – a família Weiszflog – que a empresa tomou novos contornos.

 

Mas, foi a partir desta década, já com a participação dos Weiszflog na administração da empresa que o núcleo passou a exibir dimensões surpreendentes, novas feições e receber investimentos para o desenvolvimento de sua urbanização.  Registros mostram que as instalações de Caieiras estavam em plena expansão neste período, com mais de 600 unidades para assentamento das famílias dos trabalhadores e edifícios de diversos usos coletivos.

Os investimentos dos alemães no local foram grandes nas décadas seguintes. A partir de 1930, as vilas de Caieiras foram renovadas. Há notícias de que até 1958 estabeleceram-se moradias e serviços em tipos e números diversos como açougues, apiário, alfaiatarias, banda de música, barbeiros, bares e sorveterias, biblioteca, cinemas, clubes, assistência médica e dentária, empórios, escolas, farmácias, ferrovia interna para transporte de material e pessoal, igrejas, lojas diversas, marcenarias, oficinas mecânicas e de costuras, padarias, quitandas, relojoarias, sapatarias, usinas, entre outros. Cerca de 8000 pessoas viveram concomitantemente ao redor e em função das fábricas. Os novos e modernos modelos de moradias erguidos neste período, geralmente seguiam padrões de casas isoladas ou geminadas, eram construídas em tijolos aparentes e com quintais que possibilitavam o exercício de muitas atividades, como o cultivo de jardins ornamentais, hortas e pomares, criação de animais, fabricação de produtos artesanais para venda ou consumo das famílias.

 

(…) com a participação dos Weiszflog na administração da empresa que o núcleo passou a exibir dimensões surpreendentes, novas feições e receber investimentos para o desenvolvimento de sua urbanização(…) as instalações de Caieiras estavam em plena expansão neste período, com mais de 600 unidades para assentamento das famílias dos trabalhadores e edifícios de diversos usos coletivos.

 

Festas, bailes, eventos religiosos, jogos esportivos, concursos de beleza feminina e de jardins, alegravam as instalações e a convivência no núcleo. As atividades ocorriam ao ritmo das fábricas e sob as rígidas regras alemãs que seguiam o padrão de gestão bastante difundido no Brasil a partir da metade do século XIX, no qual os métodos adotados empenhavam-se em subsidiar o trabalhador na pluralidade de suas necessidades, garantindo o controle quase que absoluto dos espaços geridos pela empresa e a boa produtividade das fábricas.

Assim, a organização de Caieiras era regida por princípios de disciplina, hierarquia, organização e limpeza, e estes, perceptíveis nos ambientes além daqueles destinados ao trabalho, como moradias e eventos festivos. Contudo, o convívio entre trabalhadores e suas relações com os patrões, mesmo com muitas diferenças hierárquicas em sua organização social, promoveu a consolidação de vínculos afetivos profundos, amizades, apadrinhamentos, amores e casamentos, mantidos mesmo após o desmonte das instalações operárias.

 

Os investimentos dos alemães no local foram grandes nas décadas seguintes. A partir de 1930, as vilas de Caieiras foram renovadas (…) até 1958 estabeleceram-se moradias e serviços (…) Cerca de 8000 pessoas viveram concomitantemente ao redor e em função das fábricas.

 

Os alemães exigiram de seus trabalhadores intensa dedicação ao trabalho, obediência às suas ordens nas fábricas e em todos os ambientes por eles administrados. Entretanto, difundiram conhecimento em áreas diversas, desde tecnologia de maquinários industriais à culinária alemã, investiram em valores de organização, respeito e possibilitaram a existência de um período passado de muito valor afetivo àqueles que lá viveram.   Aos alemães, prestaram-se algumas homenagens ao batizar edifícios de uso público e também filhos e filhas de operários.

Assim, mesmo que em termos materiais quase nada exista hoje daquilo que foi constituído na época do apogeu industrial devido às muitas demolições ocorridas no núcleo fabril, a influência da gestão Weiszflog está presente na identidade local e se manifesta de diversas maneiras.

 

Os alemães exigiram de seus trabalhadores intensa dedicação ao trabalho, obediência às suas ordens nas fábricas e em todos os ambientes por eles administrados (…) difundiram conhecimento em áreas diversas, desde tecnologia de maquinários industriais à culinária alemã, investiram em valores de organização, respeito e possibilitaram a existência de um período passado de muito valor afetivo àqueles que lá viveram. 

 

Num passeio, durante uma tarde tranquila de domingo pela cidade, portanto, quando o sol estiver se pondo atrás dos morros recobertos de eucaliptos, observem-se aqui e ali, as ruas e praças com nomes de trabalhadores que já se foram, a beleza das casas de arquitetura simples, mas cuidadosamente organizadas, os jardins alegres e floridos, as pessoas acolhedoras, comprometidas e respeitosas que carregam em si um escancarado orgulho de ser um legítimo caieirense!

 

Vanice Jeronymo é doutora e mestre em Teoria e História da Arquitetura, pela USP-São Carlos. Arquiteta, urbanista e especialista em patrimônio arquitetônico e restauro. Desenvolve desde 2006 pesquisas sobre os núcleos fabris, especialmente aqueles edificados em Caieiras, Perus e Cajamar.

 

Em 2011,  Jeronymo defendeu sua dissertação de mestrado sob o título: Caieiras: núcleo fabril de preservação. Presenteando a cidade dos Pinheirais com o maior e mais completo material de pesquisa sobre o patrimônio histórico de Caieiras, tornando-se a maior autoridade em assunto patrimonial e cultural na região.   Atualmente Vanice mantém escritório próprio em Caieiras e escreve artigos científicos e produz materiais acadêmicos.