Por: Gustavo Ferreira dos Santos
Não raramente, muitas pessoas encaram a Liturgia da Palavra ou “a hora das leituras”, como dizemos popularmente, como um momento chato, enfadonho e longo demais. Espera-se que as leituras sejam curtas, com palavras de fácil compreensão e pouca atenção lhes são dirigidas. Sempre proponho às pessoas um exercício simples para saber qual o valor elas têm dado à Palavra na celebração Eucarística: ao término da proclamação do Evangelho pelo padre ou diácono, tente recordar-se de quais livros foram tiradas a primeira e a segunda leitura (quando há). É impressionante como muitos de nós não conseguimos lembrar desta pequena informação, mesmo tendo-as ouvido alguns minutos antes. Chamo a atenção para este fato, porque isto compromete a nossa verdadeira e integral participação no mistério que celebramos enquanto assembleia litúrgica.
“Agora, diz o Senhor” (Jl 2,12). Assim foram as palavras que inauguraram a Liturgia da Palavra do tempo da Quaresma. De fato, a leitura retirada do profeta Joel ocupou a posição de primeira leitura na liturgia da Quarta-feira de Cinzas, que este ano a Igreja celebrou no dia 06 de março. Tradicionalmente a celebração desta ocasião é conhecida pelo rito da benção e imposição das cinzas, feitas a partir da queima dos ramos bentos no ano anterior. Contudo, quanto nos falta dar também a devida e necessária atenção ao profundo caminho que a Liturgia da Palavra nos conduz nesta ocasião. O Senhor nos fala e nos fala agora! Não podemos ficar indiferentes a este amoroso mistério de um Deus que se dispõe a comunicar-se com sua criação, tampouco podemos desprezar o convite que tem nos feito com insistência ao longo da história humana: é preciso voltar para Ele, mas é urgente que TODO o coração esteja empenhado nesta causa! Por isso, tendo sua Bíblia à mão, te convido a fazermos agora um breve caminho por este profundo e decisivo itinerário que celebraremos com a Igreja nas próximas semanas.
Na primeira celebração da Quaresma, antes que o sacerdote ou o ministro extraordinário dissessem as fórmulas prescritas[1] ao impor as cinzas sobre nossas frontes, ouvimos já na primeira leitura da Missa os apelos que se repetirão por todo este período quaresmal e, porque não dizer, por toda nossa peregrinação nesta terra. Tomando como base apenas a leitura do Profeta Joel, já se torna possível contemplar o horizonte que despontou e ecoou no restante de toda a Liturgia da Palavra. Basta fazer um exercício simples e destacar os principais verbos que o autor sagrado utiliza em tom imperativo, ou seja, em sentido de ordem, convite e interpelação. Aqui, chamo a atenção para três deles: “voltai”, “rasgai” e “congregai”.
“Agora, diz o Senhor, voltai para mim com todo o vosso coração, com jejuns, lágrimas e gemidos” (Jl 2,12). Um versículo como esse, não pode ser lido como se fosse parte de um livro de histórias empoeirado de nossas prateleiras. Não se trata de uma recordação de 400 anos antes de Cristo, quando estima-se que tenha sido escrito pelo profeta. É, como toda a Palavra de Deus, uma sentença viva e atual, que se perpetua na história pela ação contínua e assistente do Espírito Santo. Desta forma, vivemos ainda este AGORA de Deus em que seu convite se repete com a mesma atualidade com que tem sido feito desde Adão e Eva, quando a corrupção e o pecado romperam nossa comunhão com Ele: “voltai para mim”. Milênios se passaram e é como se muitos filhos mais novos ainda não tivessem voltado para casa do pai.[2] E se é verdade que o Senhor pede a contrição de seu povo, ou seja, que pratiquem o jejum e manifestem seu arrependimento entre lágrimas e gemidos, é ainda mais notório sua advertência primeira: que sejam atitudes nascidas de todo o vosso coração. Por isso, atenção católico: somos sim convidados às práticas quaresmais do jejum, penitência e caridade, mas desde que brotem de um coração autenticamente comprometido com sua conversão total. Caso contrário, corremos o risco de fazer por 40 dias um teatro da piedade, em que parecemos mais vítimas de um pai injusto, do que pecadores arrependidos voltando para casa paterna de onde decidimos sair por conta própria.
“Rasgai o coração e não as vestes; e voltai para o Senhor, vosso Deus” (Jl 2,13). Novamente se repetem os mesmos imperativos por uma conversão verdadeira e humilde, mas com uma interessante diferença no termo utilizado pelo profeta: rasgar o coração. Bem sabemos que quando se rasga um tecido, dependendo da situação o máximo que se pode fazer é um remendo. Quando não, descarta-lo. Deus, por sua vez, se recusa a desprezar qualquer um de seus filhos e faz conosco mais do que uma solução provisória, como fazemos com as roupas velhas. Trata-se de dar uma forma integralmente nova, infinitamente mais bonita e completamente alinhada. Durante as 5 semanas da Quaresma poderemos viver a experiência de um Deus que não espera tão somente nos remendar, mas nos reconstruir. No tríduo Pascal, nos uniremos ao suplício da cruz do Senhor, do seu despojamento total, para então celebrarmos sua vitória completa sobre o pecado e a morte, onde a vida é reconstruída plenamente. O profeta Joel é conhecido também como o “profeta de Pentecostes”[3] e é relembrado pelos Apóstolos após a vinda do Espírito Santo sobre eles[4]. Eis aí o divino movimento que a Igreja celebrará em sua liturgia: o coração rasgado na Quarta-feira de Cinzas encontra sua nova forma em Pentecostes. Até lá, há um caminho de morte e ressureição a ser percorrido.
Por fim, entre as direções dadas pelo Senhor através do Profeta, está a de congregar o povo (Cf. Jl 2, 16). Anciãos, crianças, lactentes, homens e mulheres, todos são chamados a participar desta assembleia dos que voltam a Deus para pedir perdão de suas faltas. Assim se compreende a dimensão caritativa da Quaresma: não se trata tão somente de dar esmola e ajudar os que passam necessidades materiais, mas a de buscar imitar a atitude do Pai em reconhecer que todos têm seu espaço nesta assembleia. Onde há exclusão, não há caridade. Nesse sentido é que a Igreja no Brasil se mobiliza todos os anos em propor um tema que acompanha paralela e intimamente à espiritualidade quaresmal, através da Campanha da Fraternidade. Neste ano, em que refletimos acerca da “Fraternidade e Políticas Públicas”, somos convidados a reconhecer que não estamos percorrendo um caminho individual, somos um povo que retorna, que caminha junto à casa Paterna. Lutar por políticas públicas que favoreçam e defendam a vida, a justiça e o bem comum não é assunto desconectado com a conversão pedida na espiritualidade quaresmal, pelo contrário: é justamente leva-la à plenitude sob a consciência de que somos um povo congregado, reunido. Um Deus que tem misericórdia de seu povo não combina com um cristão indiferente aos dramas públicos de seu tempo e preocupado apenas com seu bem-estar pessoal.
Buscar a conversão tão pedida na Quaresma é dispor-se a ouvir hoje a voz de Deus que, de novo, chama seu povo a pertence-lo de todo o coração. É colocar-se em um caminho que não prioriza a manutenção da própria vida, mas que se dispõe a rasgar-se para ser inteiramente novo. E mais do que isso, é reconhecer que não se volta sozinho. Caminhamos hoje e aqui, e diante das injustiças e ineficiências do poder público, comprometer-se na promoção da justiça e do direito é dar voz ao nosso coração que anseia conversão. “O Divino Espírito acenda em nossa Igreja a caridade sincera e o amor fraterno; a honestidade e o direito resplandeçam em nossa sociedade e sejamos verdadeiros cidadãos do ‘novo céu e da nova terra’”. (Trecho da oração da CF 2019)
[1] “Convertei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1,15) ou “Lembra-te que és pó, e ao pó hás de voltar” (Gn 3,19)
[2] Cf. Lc 15,11-32
[3] Cf. Jl 3,1-5
[4] Cf At 2,17-21